Os Corações de Atum tocam muito bem e o cantor, Manuel João Vieira, canta a sério. Recomendamos vivamente. Qual disco? Bem... Apetece-lhes canções que fazem ora sonhar ora sorrir, sem palavrões? Oiçam o CD “Romance”. Ou preferem ficar descansados e ter a certeza de que ninguém calou o Vieira, nenhuma tropelia lhe sendo vedada? Escutem antes o CD “Hardcore”.
O álbum de estreia do grupo, agora a ser editado, foi gravado em 2008 e não é um álbum; são dois discos, “Romance” e “Hardcore”; ou, talvez, “Hardcore” e “Romance”. Qual é o CD 1 e qual é o CD 2 ninguém sabe. Será o Romance um mero pretexto para o Hardcore? Ou o Hardcore um inocente instrumento do Romance? Se alguém souber... não diga.
“Corações de Atum” começou por ser, nos anos 90, o nome duma canção e dum CD em que Lello Minsk, aliás Manuel João Vieira, cantava temas românticos acompanhado pelo conhecido pianista e arranjador Shegundo Gallarza. Depois, houve uma cisão: Lello Minsk passou a fazer-se acompanhar pelo Pianista de Boite; os Corações de Atum nasciam no clube ao lado e tocavam o jazz dum passado que nunca existiu, com muitos solos no meio das canções.
Hoje, a banda é composta pelo guitarrista e arranjador Nuno Ferreira, o pianista Rui Caetano, o contrabaixista João Custódio e o baterista Marco Franco. Outro grande músico, Filipe Melo, que já tocou piano com eles, aparece por vezes para fazer algum arranjo de cordas. Porque pode haver cordas. E sopros. Nunca se sabe quem aparece. E há, é verdade, o cantor, bandolineiro, banjista e tocador de harmónica – que ainda escreve a maioria das canções –, Manuel João Vieira.
Chamar a Vieira um segredo bem guardado não é coisa que ocorra a muita gente. Primeiro, porque ele – ou eles que não lhe faltam heterónimos – fala alto. Depois, já se sabe, fala grosso. Daí que até apeteça dizer, pelo contrário, que toda gente o conhece. Será? E qual deles?
Com entrada na Wikipédia, Manuel João Vieira (n. Lisboa, 1962) é o fundador e líder das bandas Ena Pá 2000, Irmãos Catita e Corações de Atum. Compositor, cantor, músico e pintor que criou e encarnou diversas personagens em palco, Lello Universal, Orgasmo Carlos, Catita, entre outros. Recentemente uma sua biografia fictícia foi alvo de uma série de seis episódios, (...) Mundo Catita, (...) transmitida em exclusivo na RTP2 (...). Foi membro do movimento Homeostético, em conjunto com Pedro Proença, Pedro Portugal, Ivo Silva, Xana e Fernando Brito. É o filho mais velho do pintor português João Rodrigues Vieira, sendo igualmente pintor.
Fundador e líder, pintor e músico, cantor; escritor ou co-escritor de canções; actor. E o número de identidades musicais que assume – que nem se resumem às três bandas acima referidas – torna ainda mais apropriado que ele tenha uma biografia... fictícia.
Será tudo isto um jogo sem consequências? Um desperdício de talento? Ou, pelo contrário, esta persistente não-escolha, isto de querer ser tanta gente, tanta coisa ao mesmo tempo, acaba por ser uma escolha?
Close-up: o cantor é dos melhores que temos, assim o afirmam muitos dos seus pares; o escritor de canções, sozinho ou com o Fernando Brito, continua a ser um dos grandes cronistas da vida neste estranho país; o músico atrai muitas vezes os mais dotados que reconhecem nele um igual. Estamos sempre a falar do Manel.
E que fica disto tudo para o público? Às vezes um palavrão, outras uma rima brejeira. As músicas dele vão bem com cerveja e daí a julgar que são pouco mais do que tremoços vai um salto. Puro engano. Os seus discos estão cheios de surpresas e quando aqui e ali ele prefere a saída mais óbvia não o faz por acaso; até o óbvio ele maneja com autoridade, como se espetasse uma tarte na cara dum tipo e mesmo assim nos fizesse rir.
Voltemos aos Corações de Atum. Na rádio já se ouve o apaixonado “Gosto de Ti”. Segue-se uma colorida galeria de personagens que vão desde o Zé Gorila gabarolas até ao desgraçado que vive Dentro duma Lixeira, passando pelo inquietante narrador de Amor Cortante, o Cowboy Solitário, o competentíssimo protagonista de Strip Tease e o apaixonado crooner da Chaminé do Vapor, sem esquecer os sedutores em apuros que contam com a ajuda – preciosa! - do Totoloto ou do Euromilhões. Em bolero, balada, country & western, samba-canção, jazz; com solos; com tripas. Romance e hardcore.
A gravação foi feita no Maxime, praticamente ao vivo, os cinco músicos da banda quase sempre a tocar juntos; os convidados (corda e sopros) apareceram para fazer overdubs, sem cachet que são admiradores do Manel; depois, retocou-se aqui e ali e José Fortes, que já tinha gravado, misturou e co-produziu, com sabedoria e camaradagem.
A capa é de Pedro Proença. As ilustrações e o arranjo gráfico do booklet são de Luís Miguel Castro. Um e outro contribuíram decisivamente para um objecto muito bonito que serve de senha a quem queira entrar no mundo inocente e proibido dos Corações de Atum. Romance. Hardcore. Ou precisamente o contrário.
E se a última aventura do Vieira acabasse por vos surpreender?! Só ouvindo perceberão porquê.
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