11 outubro 2010

Música: Novo Márcia Dá

Por vezes, como agora, os factos só atrapalham. Dizer que Márcia Santos tem 28 anos ou é licenciada em Pintura pode dizer alguma coisa; que foi incluída na colectânea Novos Talentos 2009 da FNAC e gravou um EP acústico com cinco canções ajudará a conhecê-la. Que estudou em França e escreve também em francês ou que é uma das vocalistas do ultra-dançável Real Combo Lisbonense dá pistas sobre o seu ecléctico talento. Chamá-la de «revelação» só faz sentido se dissermos que é nas suas canções que Márcia se revela.

Agora, e felizmente, Márcia Dá. Mais. Depois da estreia com as palavras à flor da pele ela ficou pronta para vestir as suas canções de sons que as completam e as levam por caminhos inesperados. Rodeou-se dos cúmplices perfeitos (João Paulo Feliciano e Luís Nunes aka Walter Benjamin na produção) e entregou uma colecção de canções que insistem em ser humanas, demasiado humanas. Os seus versos deslizam por entre as frases musicais de Tomás Pimentel, B.Fachada ou Sérgio Costa (Quinteto Tati, Real Combo Lisbonense), só para dar alguns exemplos de nomes que também dão muito em Dá. Havia um medo que se poderia justificar assim: a força frágil cantada por Márcia poderia não suportar outro acompanhamento que não a viola. Nada a recear: este disco prova-nos o contrário, graças aos arranjos certeiros que deixam sair por todos os lados a única cabeça e o único coração que parecem sustentar todos os músicos que nele participam. Dá é um trabalho de amor, e tem o rigor das paixões. Nem poderia ser de outra maneira.

O lugar das canções de Márcia é um lugar perigoso e doce. É um local onde se vive sempre à beira de alguma coisa: à beira do sorriso, à beira do choro, à beira do grito, à beira da tristeza, à beira da paz e da guerra. Mas há um ténue fio que une estas canções: uma ternura desesperada, que atravessa todas as emoções, todas as descrições. Os jogos de fumo e espelhos das relações afectivas, a perda, a melancolia, até mesmo a solidão – tudo é salvo e redimido num último momento por uma urgência de ternura que comove mas também incomoda.

É um constante exercício na corda bamba entre a fragilidade e a força que não chega, entre a aceitação dos limites e a vontade de ser outro. Há muita auto-consciência nestas canções («Eu não sei se o mal sou eu/prefiro achar que não», de Vem; ou «Tenho cara de quem morde/mas apenas sou o que mereço», de Cabra-cega) mas evita-se o erro de quem se leva demasiado a sério: Márcia é perita nestas piruetas maravilhosas de auto-ironia («Eu sei/que é fácil montar o aparato da menina que é esperta/Mas também/fugir para ti faz parte de investir na pessoa certa»). Pelo meio hesita-se («Se eu não for aí/ por medo de avançar») e canta-se essa hesitação, muitas vezes embrulhadas em melodias simples que parecem ir quebrar a qualquer momento e numa voz que se afoga docemente no fim das frases. Se quisesse levar estas canções para a gaveta fácil das citações, colocá-las-ia no «Fail better» de Beckett; ou talvez a sua melhor epígrafe seja a já abusada frase de Rimbaud: «Par delicatesse j’ai perdu ma vie».

Como acontece nos melhores intérpretes e autores, o que importa é o que não é dito, são as entrelinhas, o silêncio que Márcia deixa respirar e que é onde está tudo o que não é possível dizer através das grades das palavras. Seja apenas acompanhada pela viola ou com arranjos que juntam mais instrumentos, como acontece no seu óptimo álbum de estreia, esse silêncio – essa verdade - está sempre presente. E ouve-se bem, e tantas vezes é igual a nós.

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